Desejados e bem pagos, profissionais de TI lidam com sobrecarga e despreparo
Por Márcio Padrão • Editado por Claudio Yuge |
Já virou um lugar comum dizer que o setor de tecnologias da informação e comunicação (TIC) está aquecido. Ele chegou a 69 mil contratações no Brasil de janeiro a abril, e só nesses quatro meses ele conseguiu superar todo o ano de 2020, que trouxe 59 mil novas vagas. A remuneração média no setor é de R$ 4.792, mais que o dobro da média nacional (R$ 1.945). Nas principais capitais, fica entre R$ 6.000 e R$ 9.300. Quem desenvolve códigos e programas atualmente está na contramão da crise econômica e ainda ganha relativamente bem. Mas ao colocarmos uma lupa, vemos que essa grama não está tão verde assim.
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Os salários estão altos por causa da demanda proporcionalmente grande: segundo a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), de 2019 a 2024 seria necessário, em média, contratar 70 mil pessoas por ano para suprir as necessidades deste mercado. Mas os cursos superiores de TI estão formando apenas 46 mil todos os anos. Esse déficit pode até valorizar bastante esses profissionais, mas traz outros problemas de carona, como empresas exigindo conhecimentos avançados dos desenvolvedores mesmo em posições júnior; excesso de trabalho sem o devido aumento de salário; falta de motivação; e muito trabalho perdido, com páginas de linhas de código muitas vezes jogadas fora e recomeçadas quase do zero.
"Minha pior experiência profissional foi um projeto ter sido avançado precocemente para atender um MVP [produto mínimo viável, versão mais simples de um produto para demonstração]. Com isso, o projeto apresentou muito mais problemas do que imaginávamos e por pouco não tivemos que dar rollback [voltar à fase inicial] em toda a transação. Isso acarretou em 72 horas acordado corrigindo bugs e realizando melhorias que não estavam mapeadas", lembra Rodrigo Kohler, desenvolvedor líder de integrações no Iguatemi 365, marketplace do Shopping Iguatemi, de São Paulo.
Para Richard Serikawa, analista de qualidade sênior autônomo, o ciclo de produção está muito acima do normal, gerando problemas mentais e físicos. "Há a tentativa de alienação por meio de uma humanização falsa como 'dor de dono', cultura do 'herói', 'nós somos uma família'. E o mito da meritocracia, aonde muitos dos aumentos significativos de salário são feitas com a mudança de empregador, e não por plano de carreira", critica.
Da formação à cultura da empresa
Os problemas começam na formação, já que há um entendimento de que as universidades brasileiras não estão acompanhando as atualizações deste mercado com a devida velocidade. Afinal, um profissional de TI precisa estudar constantemente as novas linguagens requisitadas, enquanto outras mais antigas ficam para trás. Como resultado, nem todos os programadores à disposição são devidamente qualificados. "O avanço tecnológico e a atualização dos currículos têm tempos distintos de maturação. Enquanto a tecnologia avança quase que diariamente, os entraves para atualização dos currículos nas instituições de ensino têm processos complexos. O distanciamento entre o setor produtivo e os centros formadores de recursos humanos também é apontado como uma justificativa para essa lacuna", diz Sergio Sgobbi, diretor de relações institucionais da Brasscom.
É mais difícil achar alguém capacitado nos setores mais avançados e "na crista da onda" em TI. De acordo com a Brasscom, a demanda reprimida no Brasil é de 25% em internet das coisas, 11% em segurança, 10% em big data, 6% em nuvem e 2% em inteligência artificial. Isso cria um grande conflito, já que da menor startup à maior multinacional há uma grande corrida do ouro para desenvolver mais e mais sistemas inteligentes, data driven (orientados por dados) e integrados a aparelhos diversos. Como resultado, a maioria dos profissionais tenta "se virar nos 30" e estudam várias linguagens e plataformas ao mesmo tempo para terem o máximo de chances possíveis nas seleções de vagas.
"Hoje, por uma falta de estrutura, muitas vezes as empresas criam times de tecnologia mais enxutos onde a mesma pessoa acaba assumindo vários papéis. Nós temos muitos sistemas funcionando graças a versatilidade, ao profissional que se vira. Por outro lado, isso também é um problema, porque quando a gente precisa de soluções mais específicas, como inteligência artificial e big data, a gente não encontra profissionais [com essa qualificação]", opina Fernando D'Angelo, consultor de inovação do Instituto da Transformação Digital.
Outro ponto apontado pelos profissionais ouvidos pela reportagem é a cultura antiquada de muitas empresas, que têm dificuldades em entender os desafios deste tipo de trabalho. "Aqui no Brasil as empresas de pequeno e médio porte costumam ser de perfil familiar. [É preciso] fazer o dono de empresa ver a tecnologia como uma parte importante da empresa, como uma ferramenta para gerar mais renda, e não como um custo", reclama Alexandre Braga Gussem, analista de negócios da empresa de soluções de TI Eiti.
Home office: resolve daqui, falha dali
A pandemia de covid ainda criou um problema novo: o home office. Na verdade, esta era uma reivindicação antiga de muitos profissionais do setor, e o distanciamento social acabou proporcionando isso "na marra". Para eles isso foi positivo. No entanto, a carga de trabalho aumentou bastante também, já que milhares de empresas se viram obrigadas a começar ou acelerar sua transformação digital, pedindo plataformas que permitiram a automação de processos ou o trabalho remoto para todos os funcionários.
"As empresas flexibilizaram mais, o que tem prós e contras. Por um lado há o estilo de vida melhor para os profissionais. O contra é a percepção de tempo, e por isso eles acabam trabalhando mais do que se tivessem indo ao escritório", analisa Leonardo Rente, CTO da b8one, que cria plataformas de e-commerce para grandes empresas. Renato Avelar, diretor de estratégia e negócios da startup, concorda e lembra que o trabalho remoto ampliou ainda mais a oferta de programadores, já que tornou possível contratar pessoas de outros estados. "Mas existem pessoas que performam melhor em casa, enquanto outras não e precisam de constante supervisão. Se ninguém cobrar [as tarefas de trabalho], acham que está tudo bem e não entregam."
Como sair dessa?
Luiz Mariano, sócio da consultoria Flow e coautor de um estudo sobre as deficiências dos profissionais de tecnologia no Brasil, acredita que ainda vai levar um tempo para normatizar a relação entre oferta e demanda. Nesse meio tempo, o cenário pode trazer comportamentos extremos nas duas pontas da corda. "O lado da empresa vê a rotatividade [de funcionários] e os pedidos aumentarem. Os funcionários estão sendo pressionados para entregar as soluções rapidamente, com pouca equipe, na falta de um processo estruturado e de condições. E enxergam muitas oportunidades aparecendo supostamente com condições melhores", diz.
Algumas soluções apontadas por ele são a oferta de um salário fixo em vez de bônus ou oferta de ações (no caso de uma pequena empresa); investir em locais de trabalho com melhores condições tecnológicas; políticas e procedimentos claros de liderança e estrutura organizacional; e envolver gente de tecnologia na busca e mapeamento de bons profissionais no mercado.
"Essa transformação é muito mais organizacional que tecnológica e mais macro do que micro. Vemos vários projetos que, se tivessem esperado mais para 'tirar o pão do forno', não teriam tirado o pão cru. E ao adiantar o trabalho em um mês, torna-se um problema que vai demorar anos para ser corrigido, por causa de má documentação", analisa Avelar, referindo-se aos mapas conceituais de um projeto de TI que permitem a outros profissionais entenderem seu funcionamento.
O executivo da b8one defende um esforço para fomentar parcerias entre empresas e universidades para corrigir tudo desde o começo, ou seja, na formação. "As empresas querem um método fácil para resolver. Em vez de capacitar profissionais, a pessoa só quer saber de contratar o profissional do outro. Isso gera um problema mercadológico que desestrutura a todos."